Os Montes de Gelboé
Por Dom Donald J. Sanborn
No final do Primeiro Livro dos Reis, pode-se ler a terrível derrota do exército israelita após uma batalha desesperada contra os filisteus. Seu rei Saul tinha sido distraído por uma obsessão de longa data, matar a Davi, e isso pela simples e única razão de que este o tinha superado no combate. Surpreendido, o exército israelita foi massacrado; Saul, mortalmente ferido, comete suicídio deixando-se cair sobre sua espada. Tudo isso aconteceu nas montanhas de Gelboé. Então os filisteus lutaram contra Israel; e os homens de Israel fugiram dos filisteus e caíram mortos nas montanhas de Gelboé (I Reis XXXI, 19).
Davi, que não havia participado da batalha, estava imerso em tristeza. Chorou por Saul, seu perseguidor, porque era também seu rei. Chorou por Jônatas, seu melhor amigo. Chorou pelos valentes homens de Israel, caídos na montanha. Os ilustres, ó Israel, foram mortos nas suas montanhas. Como caíram os fortes? (II Reis I, 19).
O compositor George Frideric Handel fez uma tocante música dessa cena dramática do Antigo Testamento em seu oratorio chamado Saul. Estas palavras, com acentos sombrios de um hino fúnebre, lamentam a perda da brava juventude de Israel:
Lamenta Israel, chora a beleza perdida
A flor de vossa mocidade em Gelboé ferida!
Vossa mais bela esperança desaparecida!
Que pilha de fortes soldados na planície caída!
A cada ano, em junho e julho, o padre, ao ler seu breviário, recita várias vezes o lamento de Davi pelos acontecimentos de Gelboé:
Montes Gelboe, nec ros nec pluvia veniant
super vos, ubi ceciderunt fortes Israel.
(Montes de Gelboé, que a chuva ou o orvalho não caia
sobre ti, onde os bravos de Israel caíram)
Onde caíram os valentes de Israel
Quando se considera que Israel no Antigo Testamento é a prefiguração da Igreja Católica no Novo, e que os filisteus, inimigos de longa data dos israelitas, são uma prefiguração dos inimigos da Igreja, é difícil não fazer a comparação com o nosso próprio tempo.
A Igreja nunca foi tão encurralada por seus inimigos; nunca com tanto sucesso. Nunca antes a Igreja travou uma batalha tão decisiva contra seus inimigos. São verdadeiramente para ela o momento de Gelboé.
A batalha é feroz. Os filisteus são naturalmente os modernistas, os israelitas são os católicos fiéis à sua santa Fé. Assim como os filisteus se reuniram com uma força terrível para vingar a humilhação sofrida na morte de Golias; em nosso tempo, são os modernistas, humilhados sob o reinado de São Pio X, que assaltam a Igreja com novo vigor enquanto os bravos de Israel – os fiéis católicos – caem pouco a pouco, massacrados nessa batalha sombria.
A formação de um grande exército
Um domingo de novembro de 1964, quando retornava da missa dominical, lembro-me de ter me sentido seriamente decepcionado. Foi o primeiro domingo do Advento e as primeiras mudanças operadas por Paulo VI foram introduzidas na missa. Não havia mais orações ao pé do altar, nem último Evangelho. A missa dialogada foi introduzida e alguns hinos com letras protestantes ressoaram em nossos ouvidos. Embora inofensivas comparadas aos padrões atuais de aberração litúrgica; eu no entanto percebia, instintivamente, que alguma coisa de muito errado se passava na Igreja Católica. Apesar dos meus quatorze anos, sentia que a religião protestante havia se infiltrado na Igreja Católica.
Minha vida nunca mais seria a mesma. A impressão interior provocada em mim pelas mudanças só piorou com o tempo. As mudanças aconteceram uma após a outra; A Igreja – ou o que parecia ser – ficava cada vez mais protestantizada.
Em 1967, entrei no seminário diocesano para continuar meus estudos universitários. Ingenuamente pensava que o seminário seria um paraíso de ortodoxia e conservadorismo, comparado à paróquia liberal. De fato, com grande tristeza, descobri desde o primeiro dia que era o contrário. Lembro-me de estar horrorizado ao ouvir os seminaristas mais antigos reivindicando o casamento para os padres, entre outras mudanças liberais.
Em 1970, entendi que nunca seria capaz de cumprir uma função no contexto do Vaticano II, de sua religião do futuro. Percebi o que a religião do Novus Ordo se tornaria, exatamente o que ela é agora. Os seminaristas liberais daquela época são agora padres ou bispos, e ainda há mais por vir da parte deles.
Com alguns outros seminaristas, partimos em busca de dioceses mais conservadoras. Naquela época, tudo o que queríamos ou esperávamos era um certo conservadorismo, um pequeno refúgio para resistir à tempestade do liberalismo.
Quase todos os conservadores pensavam que a tempestade passaria logo, a partir do momento em que o Santo Padre, Paulo VI na época, descobrisse a trama dos malvados liberais e os punisse. Todos nós pensávamos que: o Santo Padre ignorava tudo o que acontecia, eis a razão do liberalismo. Todo ano o seminário se tornava mais liberal, e todos os anos eu dizia: “No ano que vem, isso acabará.” Isso nunca aconteceu.
Na cabeça de todo conservador estava sempre a ideia implícita de que os liberais eram verdadeiros católicos, mas que se deixavam enganar. Uma vez que vissem que as mudanças não vingavam, voltariam atrás.
Foi no decorrer daqueles anos que, com outros seminaristas, começamos a frequentar a Fordham University, no Bronx, para ouvir as palestras do Dr. Von Hildebrand sobre as mudanças. Ele foi apresentado pelo Dr. William Marra, hoje bem conhecido. Além disso, liA a revista Triumph e todas as publicações tradicionais ou conservadoras que chegavam às minhas mãos.
Mas não consegui nada. Tudo ia de mal a pior.
Finalmente, no final dos anos 1970, um dos meus colegas seminaristas teve a idéia de escrever para o The Voice, um jornal tradicional publicado no norte do condado de Nova York, para perguntar se alguém tinha ouvido falar da existência de um seminário tradicional em algum lugar do mundo. A carta foi publicada. Um sacerdote, Padre Ramsey, respondeu. Disse-nos que não sabia de nada viável nos Estados Unidos, mas ouvira falar de um pequeno seminário, recém-fundado na Suíça, por um arcebispo francês. Além disso, este arcebispo viria aos Estados Unidos na próxima primavera.
Evidentemente interessado, escrevi ao arcebispo e rapidamente recebi uma resposta amável. Chegaria em março e ficaria feliz em receber a mim, assim como aos outros seminaristas interessados. Este encontro com o Bispo Lefebvre ocorreu em Nova York na segunda-feira, 15 de março de 1971. Mais uma vez, minha vida nunca mais seria a mesma.
A conversa com o Bispo Lefebvre continha em germe todas as virtudes e todos os problemas que fariam parte do movimento tradicionalista no futuro.
Sua Excelência estava a caminho de Covington, Kentucky, onde conheceria outro membro da Congregação do Espírito Santo, o Bispo de Covington.
O Arcebispo inicia a conversa mostrando-nos a aprovação que obteve da Diocese de Friburgo para a Fraternidade. Ficou claro, portanto, que ele pretendia trabalhar dentro da estrutura do Novus Ordo. Na época, nenhum de nós teria pensado em fazer o contrário, estávamos apenas procurando por um refúgio, um lugar onde pudéssemos ser católicos e cuidar de nossos próprios assuntos.
Mas durante a conversa, Monsenhor Lefebvre explicava que era necessário manter a missa exclusivamente em latim, que era a missa em uso em seu seminário. Embora feliz com a idéia de redescobrir a missa tradicional em latim, já que eu detestava a Missa Nova, a ideia de preservar a Missa Tradicional me preocupava. Considerando que Paulo VI era o Papa, o que todos pensávamos na época, como ele poderia resistir-lhe nesse ponto? Lembro que um dos seminaristas fez essa objeção. O Arcebispo deu uma resposta vaga sobre sua legalidade e insistiu na necessidade de preservar a Missa tradicional para salvaguardar a Fé. Evidentemente, ele estava certo, mas a questão da legalidade permanecia desconcertante e perturbadora.
Essa conversa prefigurou todos os eventos que se seguiriam. O desejo de colaborar com o Novus Ordo iria finalmente entrar em conflito com a resolução de manter a Missa Tradicional e a Fé Católica em geral. O Arcebispo, e com ele a Fraternidade, iria passar vinte e cinco anos de agonia, tentando casar dois elementos contraditórios: o Novus Ordo e a Fé Católica. E como o Novus Ordo é promulgado pelo “papa”, o Arcebispo e a Fraternidade buscarão um caminho intermediário impossível, entre reconhecer nele a autoridade de Cristo e resistir nele à autoridade de Cristo.
Estas duas tendências contraditórias do bispo Lefebvre, trabalhar com o Novus Ordo por um lado, e, por outro, preservar a Fé Católica estará na origem das duas tendências nascidas em Ecône: a linha dos brandos, liberais, que pretendiam comprometer a fé católica a fim de obter a aprovação do Novus Ordo; e a linha dura, que preferia abandonar toda esperança de aprovação do Novus Ordo antes de comprometer a Fé.
Como eu disse, há dez anos, em um artigo intitulado The Crux of the Matter, o Monsenhor deu esperanças às duas facções. Alguns atos e declarações eram bem brandos, outros atos e declarações eram bem linha dura. O resultado foi que cada uma lado podia arrogar-se intérprete das ideias e do espírito do Monsenhor.
Na verdade, este seguia um caminho que não era nem de uma e nem de outra parte. O método que preconizava para resolver a crise da Igreja consistia em preparar um grande exército de sacerdotes tradicionalistas que seriam enviados a todos os lugares para rezar a Missa; pela missa e pelo apostolado, atrairiam os católicos. O Novus Ordo pereceria por falta de vocações, pensaa ele, e rapidamente o Vaticano e os bispos deveriam capitular diante do fato de que os únicos padres restantes seriam tradicionalistas. De bom ou mau grado, teriam que retornar à Tradição. Além disso, Monsenhor pensava ser absolutamente necessário preservar a doutrina, a liturgia e a prática católicas, portanto, resistir à autoridade do Novus Ordo, ou seja, em particular de Paulo VI.
Dessa dupla afirmação nasceu a única solução possível: o filtro. Reconhecer a autoridade do Novus Ordo como autoridade católica, mas filtrando suas doutrinas, suas leis e sua liturgia, para ficar com o que é católico e rejeitar o que não o é
Além disso, Monsenhor Lefebvre procurou formar seminaristas que aceitassem essa solução e, com base nela, tivessem a Fraternidade – isto é, ele – como autoridade para desempenhar esse papel de “filtro”. Foi assim que nasceu o “culto a Monsenhor”. Incapazes de resolver o problema da autoridade, os seminaristas consideravam Monsenhor Lefebvre como o porta-voz especial de Deus nessa crise. Roma não era mais um problema desde que Monsenhor estivesse lá para interpretar o pensamento e nos conduzir entre os vários obstáculos modernistas que surgiam.
De 1970 a 1975, essas três correntes, a linha dura, a linha branda e a linha do Monsenhor, desenvolveram-se paralelamente e tiveram apenas choques esporádicos de baixa escala. Os “duros” manifestavam abertamente suas opiniões sedevacantistas sobre Paulo VI. Eles não viam mais a necessidade de esconder seu alinhamento com o Breviário e as rubricas de São Pio X, e os seminaristas podiam ser vistos em todos os lugares com esses breviários em todo o seminário.
Em sala de aula, os linha dura discutiam com professores de tendência modernista; um certo bispo britânico, hoje bem conhecido, liderava as tropas. A ala branda defendia os professores e assediava a dura. Monsenhor Lefebvre geralmente ficava de fora.
Em 1974, o Vaticano decidiu realizar uma investigação sobre Ecône e enviou visitantes para interrogar professores e seminaristas. Prevendo que o relatório seria mal recebido, Monsenhor Lefebvre faz sua famosa Declaração, que deixou muito felizes os duros e foi um golpe para os brandos. Um ano depois, em maio de 1975, Paulo VI aboliu a Fraternidade. Monsenhor Lefebvre decide resistir e mantém aberto seu seminário em Ecône. Os duros exultaram, cheios de entusiasmo por essa nova guerra aberta contra o modernismo, particularmente localizado no Vaticano. Estes não levaram em conta a supressão, considerando os atos de Paulo VI nulos, sem efeito.
Para os brandos, foi a tempestade. Muitos deixaram Ecône. Aqueles da linha de Monsenhor continuaram a segui-lo lealmente.
Os eventos de 1975 a 1978 prenunciavam o triunfo do duros. Monsenhor parecia abandonar toda esperança, e até mesmo todo desejo, de se reconciliar com o modernista Montini. Ele falava da igreja do Vaticano II como “uma igreja cismática” e da Nova Missa como uma “missa bastarda”. Naquela época, parecia que a dicotomia de Monsenhor Lefebvre nos anos anteriores seria resolvida pela decisão lógica e coerente de continuar a guerra contra o Novus Ordo. A Fraternidade teria sido o grande exército da Igreja Católica diante de seus inimigos modernistas, os filisteus dentro dos muros, principalmente dentro dos muros do Vaticano. Ela teria atraído as vocações de todo o mundo, ela as teria formado de acordo com o espírito da Igreja Católica, antimodernista, para enviá-las mais tarde aos campos de batalha de todos os pontos da terra. O futuro se anunciava brilhante, certo, glorioso.
Foi então que a 6 de agosto de 1978, Paulo VI fez algo que deixaria muitas pessoas felizes: Ele parou de viver.
João Paulo II: O Abraço de Urso
Passaram-se os poucos dias concedidos a Luciani e foi eleito o atual [este artigo é de 1994.], e aparentemente imortal, Wojtyla, em outubro de 1978, como o terceiro “papa” do Vaticano II. Monsenhor queria ver o novo “papa”. A reunião aconteceu logo depois da eleição de Wojtyla. No decorrer dessa conversa histórica, Wojtyla declara a Monsenhor Lefebvre que poderia viver “aceitando o Concílio à luz da Tradição”, uma fórmula que Monsenhor sempre usou em sua velha tentativa de coexistir com o Novus Ordo. Isso significava: Para Lefebvre, isso significava filtrar o Concílio para reter apenas o que era católico; para Wojtyla, significava outra cor no espectro modernista de ideias. Para Monsenhor Lefebvre, era renovação das esperanças, alimentadas durante o pontificado de Paulo VI, de receber a aprovação da parte do Novus Ordo; para Wojtyla, era o meio de integrar os tradicionalistas em uma High Church. Para o bispo Lefebvre, era a esperança de obter uma capela lateral tradicionalista dentro da catedral modernista; para Wojtyla. também.
Conjugada a essa esperança de reconciliação, Wojtyla dá um abraço de urso em Monsenhor. A guerra acabou.
Pelo menos aquela. Depois dessa entrevista, só restava ao Monsenhor uma coisa a fazer: transformar a linha dura de sua Fraternidade, organizada em ordem de batalha, em um instrumento de compromisso pleno de flexibilidade. O diálogo deveria ser a ordem do dia para os próximos anos, e ele precisava de um clero que trabalhasse, não com espada, mas de caneta na mão para a assinatura de um pacto de paz com os sabotadores do catolicismo.
Seguiu-se um reino de terror dentro da Fraternidade. Convencido de que, a partir de agora, teria que preparar um exército de diálogo e pessoas dispostas a concluir sua longa busca pela aprovação do Vaticano modernista, Monsenhor entendeu que precisaria ou converter ou eliminar a oposição, coisa que fez com uma decisão implacável e, mais ainda, cruel. O sedevacantismo foi banido. Era necessário reconhecer que João Paulo II era um papa ou viver no exílio e na pobreza.
Com grande alegria dos brandos, cada duro da Fraternidade foi sistematicamente derrubado, ou pela conversão obtida por pressões, ou por expulsão. É com a expulsão de quatro padres italianos que o procedimento termina, em 1986, e nenhum daqueles que considerava Wojtyla como o inimigo permanecerá na Fraternidade. Desde então, o caminho tem sido aberto para um compromisso que permite a coexistência, a capela lateral na catedral modernista do ecumenismo.
Apesar do revés do Encontro de de Assis e outros crimes ultrajantes de Wojtyla, as negociações com o inimigo seguiram seu curso, até o fatídico dia do Protocolo: 5 de maio de 1988, festa de São Pio V – que coincidência!
Após meses de negociações com Ratzinger, um documento, considerado preparatório antes do último acordo definitivo mais formal, foi apresentado à firma de Monsenhor Lefebvre. Nesse protocolo fatídico, como é chamado, Monsenhor Lefebvre:
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Prometia fidelidade a João Paulo II e ao corpo dos bispos Novus Ordo.
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Concordava em aceitar o capítulo 25 da Lumen Gentium, reconhecendo assim o Vaticano II como o ensinamento da Igreja Católica, sem qualquer reserva.
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Aceitava o diálogo com o Vaticano sobre os pontos discutidos do Vaticano II, a nova liturgia, os problemas disciplinares, “evitando toda controvérsia”, ou seja, abandonando a denúncia pública de erro.
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Reconhecia a validade da nova missa e dos novos sacramentos como foram promulgados por Paulo VI e João Paulo II em suas edições oficiais, o que implica que são ritos católicos promulgados pela Igreja, e, portanto, não podem ser inválidos.
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Reconhecia o Código de Direito Canônico, que por sua própria boca declarara cheio de erros, para não dizer de heresias.
Em retorno, Ratzinger concedia à Fraternidade um lugar no que Monsenhor Lefebvre sempre chamou de “a igreja conciliar”. Além disso, ele concordava em sugerir ao “Santo Padre” que nomeasse um bispo eleito dentre os membros da Fraternidade. Além disso, o Vaticano também aceitava criar uma “Comissão de Tradição” para ajudar a salvaguardar as práticas tradicionais.
No dia seguinte, 6 de maio, Monsenhor Lefebvre violou o acordo recém-aceito, dizendo a Ratzinger que se o “papa” não nomeasse um bispo e não preparasse o Mandado Apostólico (permissão para consagrar) em meados de junho, ele continuaria sem esperar mais para a cerimônia. Ele apresentou como razão o fato de que deixar o evento para mais tarde causaria um sentimento de desilusão entre os tradicionalistas. Além disso, acrescentou, “hotéis, meios de transporte, grandes empresas para montar a cerimônia, já tinham sido alugadas.”
Ratzinger e Monsenhor se reuniram em 24 de maio. Ratzinger assegurou a Monsenhor que o “Santo Padre” elegeria um bispo da Fraternidade, que aprovaria uma consagração feita em 15 de agosto, apenas quarenta e cinco dias depois do tão desejado 30 de junho. Monsenhor respondeu com duas cartas, uma para Ratzinger e outra para Wojtyla; ele insistiu no número de três para os bispos, na data de 30 de junho para a consagração, e pediu que a “Comissão para a Tradição” fosse a maioria dos membros da Fraternidade.
Ratzinger respondeu no dia 30 de maio insistindo nos termos do Protocolo de 5 de maio, e na submissão do arcebispo ao “Papa” no que se refere à consagração. Em 2 de junho, Monsenhor respondeu denunciando o espírito do Vaticano II e anunciou a Ratzinger que pretendia prosseguir com a consagração em 30 de junho, sob a “permissão” concedida por Roma para o dia 15 de agosto.
As deturpações continuaram. Em 15 de junho, Monsenhor Lefebvre ofereceu uma coletiva de imprensa, na qual declarou que João Paulo II não era católico, que havia sido excomungado, que estava fora da Igreja, mas que era, no entanto, o chefe da Igreja. No dia 16, ele disse a um jornalista que mudaria de idéia se João Paulo II – que não era católico ontem – aprovasse seus quatro bispos.
Em 30 de junho, Monsenhor Lefebvre consagrou seus quatro bispos. Em 2 de julho, João Paulo II excomungou-os, bem como todos aqueles que os seguiram.
Os dois lados do Arcebispo
O desenvolvimento dessas negociações com o Vaticano modernista mostrou claramente que existiam em Monsenhor Lefebvre dois aspectos opostos, cada um capaz de ditar sua própria teoria diferente e contraditória, bem como seu próprio modo de ação.
Por um lado, havia a fé do Monsenhor. Eu o conheci por muitos anos, posso atestar o fato de que ele era profundamente católico, antiliberal, antimodernista. Ele detestou as mudanças do Vaticano II e, como todos nós, queria o retorno da Fé Católica.
Por outro lado, havia a diplomacia do Arcebispo. Ele acreditava firmemente e, bem inclinado a essa arte por ter sido um Delegado Apostólico, achou que pudesse resolver os problemas da Igreja por meio da diplomacia.
Livre de considerações diplomáticas, sua fé brilhava inflamada por sua grandeza de alma. As declarações que fez nesses momentos de humor não-diplomático e sem cálculo foram excelentes. Eram exatamente o que a Igreja precisava: uma simples declaração de verdade sem ambigüidade, uma denúncia direta dos modernistas, um forte programa de ação positiva contra eles através da formação e ordenação de padres tradicionais. É neste último aspecto que reside toda a grandeza do Monsenhor Lefebvre.
Pelo contrário, quando a diplomacia ditava seus pensamentos e ações, ele parecia uma pessoa completamente diferente. Pronto para fazer capitulações vergonhosas para alcançar seu objetivo, ele oferecia afirmações ambíguas aos modernistas em uma bandeja, esperando que eles concordassem em dar-lhe um lugar à mesa modernista. Por exemplo, apesar de não querer saber da missa nova, ele aparentemente aceitou permitir a celebração de uma missa nova na vasta igreja parisiense de Saint-Nicolas-du-Chardonnet:
“O Cardeal (Ratzinger) deixou-nos saber que seria necessário autorizar a celebração de uma Missa Nova em Saint-Nicolas-du-Chardonnet. Ele insiste na existência de uma única Igreja, a do Vaticano II. Apesar dessas decepções, assino o protocolo de 5 de maio.” (Dossier on Episcopal Consecration, Ecône, 1988, p. 4).
Sob a influência da diplomacia, sua coragem habitual transformava-se em uma fraqueza indescritível, temerosa dos inimigos da Igreja. Assim, em 1974, dizendo que sua brilhante declaração era uma gafe diplomática, apresentou uma desculpa ao cardeal Seper, uma desculpa indigna de sua fé e sua força, dizendo que foi composta em um momento de indignação.
Para Ratzinger, na tentativa de conseguir que o Vaticano aprovasse as esperadas consagrações, Monsenhor argumenta que as “tendas já estavam alugadas”, como se as consagrações não passassem de uma festa de casamento.
Ele realmente achava que o Vaticano se deixaria levar pela história das tendas? Ele realmente achava que o inconveniente de cancelá-las tinha algo a ver com o assunto em questão? Claro que não. Na verdade, Monsenhor sabia em seu coração que João Paulo II não era mais Papa do que você ou eu, suas relações com ele não eram a tradução de um espírito de submissão à sua “autoridade”, mas sim uma tentativa de obter de Wojtyla o que Wojtyla poderia lhe dar: uma aparência de legitimidade.
A prova está na posição que expressa aos quatro bispos em 28 de agosto de 1987, pouco antes de começar o longo processo de negociações finais: “A Cátedra de Pedro”, escreve ele, “e as posições de autoridade em Roma são ocupadas por anticristos” (Ibid., p.1). Alguém poderia se perguntar: “Como poderia Monsenhor Lefebvre honestamente entrar em negociações com esses anticristos, esforçando-se para obter reconhecimento deles, a fim de trabalhar em conjunto com eles?”. “Como poderia chamar de Vigário de Cristo quem ele mesmo condenava como anticristo?”
Como dois discos com registros diferentes que giram ao mesmo tempo, os dois aspectos de Monsenhor Lefebvre, o da fé e o da diplomacia, podiam se manifestar simultaneamente, às vezes no mesmo dia, em suas declarações, em suas tomadas de posição e em seus atos.
Um exército que luta pela coexistência com os hereges
Muitas vezes se ouve dizer que, se não houvesse Monsenhor Lefebvre, não haveria movimento tradicionalista, nem padres, nem missas tradicionais, nada.
Esta afirmação é em grande parte verdadeira. Deve-se a Monsenhor Lefebvre o crédito de ter concebido a ideia de um grande exército de padres espalhados pelo mundo, para trabalhar de maneira coerente e unificada contra o clero modernista. É ele que tem o mérito de ter arranjado um sistema para alcançar este objetivo, com a fundação de seminários, o estabelecimento de numerosas casas religiosas, escolas, conventos e noviciados. É também ele quem tem o mérito de ter formado um exército bem equipado, pelo menos no nível material e organizacional.
Graças a esse feito material e organizacional, bem como ao carisma que atraia tantas pessoas para ele, arrematou quase todas as vocações para o sacerdócio daqueles que resistiram às mudanças. A criação de Ecône, em 1970, foi o chamado das tropas da Igreja para a última batalha contra o poder das trevas, contra as portas do inferno. Muitos responderam ao chamado e continuam a responder. É a juventude escolhida de Israel, na feroz batalha contra os filisteus.
Porém, como na batalha nas montanhas de Gelboé, nossa elite de jovens está sendo massacrada e o exército está perdendo para os filisteus.
Pois enquanto o exército de sacerdotes que resistem ao modernismo não entende que os filisteus são o inimigo, este será aniquilado.
De fato, se é Monsenhor Lefebvre que tem o mérito de ter armado e equipado este exército de sacerdotes, é igualmente dele a responsabilidade por ter levado esses sacerdotes – assim como os simples leigos que os assistem – à armadilha do grande inimigo. Essa armadilha consiste em subornar a resistência ao modernismo, fazendo-a passar por um ramo tradicionalista da religião modernista, uma High CHurch, seguindo o modelo do ramo conservador do anglicanismo.
Essa armadilha, essa “solução” do problema do Vaticano II e suas reformas, serve perfeitamente aos propósitos do modernismo. Como a aranha em sua teia, este capta virtualmente no interior de sua religião reformada – e herética – qualquer resistência que pudesse ser oposta pelo catolicismo. Ela a captura, impõe as regras, prende-a e desviriliza-a. A Igreja “Católica” então apareceria aos olhos de todo o mundo semelhante à Igreja Anglicana, uma igreja na qual a adesão à Fé Católica seria reduzida à pompa litúrgica, e onde “a crença católica” estaria em comunhão com a heresia. Tal sistema reduz a Igreja Católica a uma seita, pois ela não pode emprestar o nome de católico aos hereges modernistas e, ao mesmo tempo, chamar-se a verdadeira Igreja de Cristo.
No entanto, os lefebvristas veem como a solução dos problemas da Igreja: a coexistência dos modernistas com os católicos na mesma Igreja, em cujo seio eles teriam suas igrejas e nós as nossas, todas sob o mesmo papa, que seria o Santo Padre de hereges e católicos.
Essa atitude não vem de Deus. Nunca na história do Antigo ou do Novo Testamento, Deus fez compromissos com seus inimigos. Ele nunca permitiu a mistura de falsas religiões com Sua Doutrina Sagrada. De fato, foi precisamente por essa razão que, procurando sempre misturar sua fé divinamente revelada com as religiões pagãs dos povos vizinhos, que no Antigo Testamento o povo judeu era continuamente castigado.
Não, ou o Vaticano II vem de Deus ou não vem de Deus. Ou as mudanças trazidas por este Concílio vêm do Espírito Santo, ou elas não vêm do Espírito Santo. Se vêm do Espírito Santo, devem ser aceitas e nossa resistência é pecado. Se não vêm do Espírito Santo, vêm do diabo e, nesse caso, há apenas uma resposta da Igreja e esta é anátema, mil vezes anátema e excomunhão de todos os hereges. Nenhuma coexistência com heresia e hereges. Exigir tal coexistência é reduzir a Igreja a uma seita, como a dos protestantes.
A resistência que opomos ao Vaticano II e suas mudanças não têm por fim a obtenção de uma capela lateral tradicional dentro da grande catedral modernista. Não, nossa voz se eleva para rejeitar e denunciar a heresia, é a voz da Fé contra esses hereges que invadiram nossos edifícios sagrados e os preencheram com a abominação herética.
Monsenhor Lefebvre forneceu a seus sacerdotes tudo, exceto uma teologia adequada para distinguir os inimigos da Igreja; ele formou um exército que não sabe onde está o inimigo. Seu exército luta pelo “reconhecimento” das “autoridades” modernistas. Eles procuram ser absorvidos pelos filisteus em vez de derrotá-los. Eles querem trabalhar com o modernismo dentro do Vaticano e não expulsá-lo. Sua batalha é pela coexistência com os modernistas, uma batalha para compartilhar compartilhar a mesma Igreja com os hereges.
O espírito de “negociação com Roma” continua a penetrar na Fraternidade. O próprio termo soa cismático, uma vez que católicos não negociam com Roma, mas a ela se submetem. Pouco depois das consagrações de 1988, Monsenhor Lefebvre declarou que as negociações continuariam e que previa que em cinco anos tudo estaria resolvido. Recentemente [artigo de 1994] também ouvimos falar de novas negociações, novamente com Wojtyla. A encíclica de Wojtyla, Veritatis Splendor, foi elogiada pelo então Reitor de Ecône (!), que a descreveu como “antiliberal, antiecumênica, anticolegial”, “não precisando de nenhuma revisão”.
A raiz do problema
A razão pela qual a Fraternidade continua o caminho da negociação com os modernistas com o objetivo final de ser absorvida por eles, é que considera que Wotjyla detém a autoridade papal. Eles sentem a necessidade de se submeter a ele, de ser reconhecidos por ele para estar sujeitos a Cristo, para ser reconhecidos por Cristo. Pois a autoridade papal é a autoridade de Cristo.
No entanto, ao mesmo tempo, a Fraternidade olha para quase tudo o que Wojtyla diz ou faz como herético, errôneo, escandaloso ou perigoso para as almas. Eles dizem abertamente que um católico não pode sobreviver espiritualmente no Novus Ordo. Quer dizer, que a Missa e os Sacramentos, a doutrina e a disciplina que nos foram oficialmente dadas pelo Papa (Papa aos seus olhos) são tão prejudiciais para as almas que são causa de morte espiritual.
Diante desse perigo de morte espiritual para as almas, a Fraternidade considera que tem carta branca para continuar todo o apostolado que quiser em qualquer diocese do mundo. Ao mesmo tempo, continua as negociações com o agente da morte espiritual, esperando poder trabalhar lado a lado com ele nas dioceses, como faz a Fraternidade São Pedro.
Se a Fraternidade abandonasse essa posição impossível – que é tal e qual a posição dos donatistas, jansenistas, galicanos e veterocatólicos -, e adotasse a posição católica, então ela se tornaria o verdadeiro e valente exército de resistência que ela foi feita para ser.
Sua posição é impossível, porque, na sua maneira de ver, eles lutam contra a verdadeira Igreja Católica da qual eles querem fazer parte. Mas os católicos não lutam contra a Igreja, mas se submetem a ela, pois ela é indefectível e infalível. Ela é a Igreja de Cristo e sua autoridade é a autoridade de Cristo.
É, portanto, impossível para a autoridade católica – a autoridade de Cristo – prescrever para toda a Igreja Católica, doutrinas, disciplinas, missas ou sacramentos errôneos ou fautores da morte; tal é a posição católica. Como as reformas do Vaticano II são falsas e causam a morte, é impossível para elas virem da autoridade católica, a autoridade de Cristo. Portanto, é impossível para Wojtyla possuir a autoridade papal que ele alega possuir. Ele não representa a Igreja Católica. As reformas do Vaticano II não vêm da Igreja Católica.
A conclusão prática da posição católica é evidente: não pode haver compromisso com os hereges do Vaticano e das chancelarias episcopais. É dever da Igreja denunciar os modernistas e impostores que afirmam ter autoridade católica e incitar os católicos a não darem crédito a eles, recusando-lhes o nome de católicos. Esta denúncia de sua falsa autoridade é essencial para a indefectibilidade da Igreja, uma vez que a Igreja seria defeituosa se aceitasse como católicas as doutrinas, disciplinas e liturgias não-católicas emanadas pelo Vaticano II, por Montini e Wojtyla.
A Fraternidade São Pedro, filha de Monsenhor Lefebvre
Os efeitos desastrosos da diplomacia de Monsenhor Lefebvre e da falsa eclesiologia em que se baseia são vistos na Fraternidade São Pedro e na Missa de Indulto. A única razão pela qual temos um e outro é que Monsenhor Lefebvre pediu por eles e trabalhou muito para obtê-los.
A ideia de uma congregação religiosa trabalhando dentro das estruturas diocesanas do Novus Ordo, preservando a missa e a teologia tradicional, foi, desde o início, o sonho de Monsenhor Lefebvre. Esse sonho foi realizado quando o Protocolo foi colocado diante dele para assiná-lo. Ele finalmente obteve o que, por tanto tempo e graças a uma diplomacia qualificada, projetou e buscou alcançar. E, se se pode dizer que sem Monsenhor Lefebvre não teríamos nenhum sacerdote tradicionalista, podemos igualmente dizer que sem Monsenhor Lefebvre não teríamos a Fraternidade São Pedro ou a Missa de Indulto. Acredito que, com o tempo, a Fraternidade São Pedro e a Missa de Indulto suplantarão a Fraternidade São Pio X. É uma questão de bom senso: se Wotjyla é o Papa e o Vaticano II um verdadeiro concílio católico, como podemos logicamente resistir quando ele nos oferece um nicho de tradição? Como podemos logicamente dizer que suas doutrinas estão erradas ou sua liturgia é fautora de morte? Obviamente, nós não podemos. Com a Fraternidade São Pedro, “você pode ter o seu bolo e comê-lo”, ou seja, você pode ter a Tradição e Wojtyla ao mesmo tempo. Se você estiver com a Fraternidade São Pio X, continuará com o constante e lacerante problema da autoridade. A “autoridade de Cristo” excomungou a Fraternidade São Pio X. O que ela pode apresentar como uma solução para este problema, se não que “a autoridade de Cristo está errada”?
Notamos também a queda da juventude corajosa da Igreja, no significativo número de deserções da Fraternidade São Pio X. Cada vez que alguns padres deixam este grupo, voltam-se sempre para a esquerda, isto é, sempre mais perto do Novus Ordo através da Fraternidade São Pedro ou da Missa de Indulto. Eles nunca deixam o Novus Ordo. Eis um fato que diz muito sobre o treinamento que recebem em seminários lefebvristas.
Padre John Rizzo é um exemplo disso. Ele foi um dos meus seminaristas em Ridgefield. Era muito duro na época em suas posições teológicas e não queria ter nada a ver com o Novus Ordo. Neste momento, lemos que ele foi aceito em uma diocese do Novus Ordo e que trabalha com os modernistas. O que aconteceu? Apenas dez anos de lefebvrismo. Durante esses dez anos, ele aprendeu que a difícil posição dos “nove padres maus” era cismática, já que eles não reconheciam o papa. Bem, parabéns para vocês da Fraternidade São Pio X por terem tido um bom seminarista e terem-no arruinado, pois este não fez mais do que tirar a conclusão lógica de suas posições teológicas! Se não abandonarem suas posições inconsistentes e perigosas, verão que o fiasco de padre Rizzo se multiplicará em grande escala.
Nenhuma base lógica para o apostolado
Por reconhecer há tanto tempo a posse plena da autoridade papal de Wojtyla, a Fraternidade não oferece nenhuma base lógica para justificar seu apostolado.
Quando um sacerdote exerce o apostolado em tempos normais, não pode praticar nenhuma atividade sacerdotal sem ser autorizado pela autoridade competente, isto é, o bispo da diocese. É essa autorização que torna a missa do sacerdote e seus sacramentos católicos; isto é, administrados por um agente da Igreja Católica devidamente autorizado. É esse defeito de autorização que faz da missa ortodoxa grega uma missa não-católica: embora validamente ordenada e mesmo que diga uma missa válida, o sacerdote não atua em nome da Igreja Católica, mas contra ela.
Quando o sacerdote tradicionalista exerce sua função, quando diz a missa e administra os sacramentos sem a permissão do bispo do lugar, ele deve justificar de uma forma ou de outra o fato de fazê-lo sem autorização. A única justificativa possível que poderia ser apresentada é a seguinte: “a Igreja quer que eu faça”. Nenhuma autoridade autorizou-o a dizer a missa e distribuir os sacramentos, então ele deve ter um argumento coerente e convincente para dizer que a Igreja-Cristo em última instância, quer que ele faça isso.
Mas se o padre tradicionalista diz que a autoridade é exercida por Wojtyla ou pelo bispo local, como pode ele então dizer que a Igreja quer que ele exerça um apostolado não-autorizado? Se a autoridade de Cristo repousa no bispo do lugar, como pode a autoridade de Cristo querer que o sacerdote tradicionalista aja contra o bispo local? Se a autoridade de Cristo reside em Wojtyla, como pode Cristo desejar que um grupo de sacerdotes exerça um apostolado desprezando Wojtyla?
Cristo está contra Cristo?
Vamos ver o outro lado da moeda? Se a autoridade de Cristo não reside em Wijtyla, como então Cristo ou a Igreja autorizariam o apostolado daqueles que afirmam com insistência que o herético Wojtvla é verdadeiramente o Papa? Como pode Cristo ou a Igreja desejar o apostolado de sacerdotes que tentam levar os fiéis ao rebanho de falsos pastores, pastores hereges, sacerdotes que denunciam como cismáticos aqueles que não reconhecem os falsos pastores?
Tudo isso para dizer que não é possível separar a autoridade da Igreja da autoridade de Cristo, não menos do que separar a autoridade da Igreja da própria Igreja. São uma única e mesma coisa. Portanto, não se pode pretender representar a Igreja Católica agindo contra sua autoridade. Tampouco se pode fingir representar a Igreja Católica se uma autoridade falsa é reconhecida. Onde Pedro está, está a Igreja. Se o seu apostolado não é o de Pedro, o seu apostolado não é o da Igreja, nem o de Cristo. Reconhecer como Pedro a quem você condena o apostolado significa condenar de acordo com a sua própria boca o seu próprio apostolado.
Esse fato de reconhecer a autoridade do Papa, por um lado, mas “agir por conta própria”, por outro, tem sido um sinal revelador de numerosos hereges e cismáticos. Foi a atitude dos jansenistas e galicanos, assim como a dos veterocatólicos. E foi condenada pelo Papa Pio IX:
“Do que adianta proclamar em voz alta o dogma do primado de Pedro e seus sucessores? Qual é a serventia de repetir a profissão de fé na Igreja Católica e de obediência à Sé Apostólica, se as ações desmentem as palavras? Ademais, o fato de a obediência ser reconhecida como um dever não torna a rebelião ainda mais inexcusável? E ainda, acaso a autoridade da Santa Sé não se estende à aprovação de medidas que Nós fomos obrigados a tomar, ou acaso é suficiente estar em comunhão de fé com a Sé Apostólica, sem acrescentar a submissão da obediência? Não é isto algo que não pode ser sustentado sem dano à Fé Católica? … Na verdade, veneráveis irmãos e queridos filhos, trata-se de reconhecer a autoridade (desta Sé) também sobre suas igrejas, e não apenas no que diz respeito à Fé, mas igualmente no que diz respeito à disciplina. Quem o nega é um herege; quem, mesmo reconhecendo-o, teimosamente se obstina, é anátema” (Quæ in patriarchatu, 1 de setembro de 1876, ao clero e aos fiéis do rito caldeu).
“E não podemos passar em silêncio a audácia daqueles que, não suportando a sã doutrina, fingem que: ‘Quanto aos juízos e decretos da Sé Apostólica, cujo objeto toca claramente ao bem geral da Igreja, seus direitos e sua disciplina, é possível, a partir do momento em que não concernem aos dogmas relacionados à Fé e aos costumes, recusar-lhes o assentimento e a obediência sem pecado, e sem deixar em nada de professar o catolicismo;” (Quanta Cura, 8 de dezembro de 1864).
A posição da Fraternidade não é, portanto, uma posição católica. Que praticamente todos os jovens da Igreja, os bravos de Israel, tenha uma cabeça cheia de princípios não-católicos em sua luta contra o modernismo, eis aí um tremendo desastre. Isso significa que não há uma voz verdadeiramente católica de resistência ao modernismo senão alguns padres espalhados pelo mundo que denunciam os modernistas como privados de autoridade. Esse é o Gelboé da Igreja.
Uma falsa noção da Igreja
O problema fundamental da Fraternidade e de seus membros é que eles trabalham a partir de uma falsa noção da Igreja. Eles olham para a eleição de Wojtyla por um colégio de cardeais do Novus Ordo, e disso concluem que trata-se de um legítimo pontífice.
E como a dificuldade de estar em comunhão com um herege não lhes escapa, eles dizem que João Paulo II está à frente de duas igrejas: uma, a igreja conciliar; e outra, a Igreja Católica. Às vezes fala e age como chefe da igreja conciliar; outras, como chefe da Igreja Católica.
Como saber o que vem de um ou de outro? Por meio de Monsenhor Lefebvre, que recebeu de Deus a missão de pesar os feitos e palavras desses papas modernistas, e nos dizer em que acreditar, o que fazer e o que pensar. Agora que o Monsenhor morreu, essa autoridade é do Superior Geral.
A partir desse princípio, deve-se tirar a conclusão lógica de que a infalibilidade e indefectibilidade da Igreja Católica, o depósito da Fé, a salvação de todos os fiéis, estão nas mãos do Superior Geral. A Igreja Católica, a Fé Católica, a validade dos Sacramentos, o que devemos crer para nos salvar, tudo foi confiado ao juízo do Superior Geral.
Poder-se-ia comparar esse tipo de eclesiologia, ou teologia da Igreja, aos “diferentes timbres” das linhas telefônicas. Para a chegada de um fax, você tem um timbre; para um telefonema, outro. Assim, por analogia, se Wojtyla disser algo católico, você receberá da Fraternidade um certo som de toque; se disser algo modernista, você receberá outro som da Fraternidade.
É desnecessário dizer que tal sistema não é apenas absurdo, mas também reduz a infalibilidade da Igreja Católica a zero. Em um sistema desse tipo, o papa não é mais a autoridade, mas o Superior Geral da Fraternidade São Pio X.
Seu sistema é falho, no sentido de que eles não entendem que é a possessão da autoridade papal que faz do papa o papa. Esta autoridade, garantida pelo Espírito Santo em questões de doutrina, moral, liturgia e disciplina geral, não pode prescrever para a Igreja falsas doutrinas ou más leis que os fiéis precisam rejeitar, que devem necessariamente resistir. Mas, em geral, o movimento tradicionalista postula a rejeição sistemática da doutrina, moral, liturgia e disciplina geral do Novus Ordo, a ponto de desenvolver um apostolado em oposição ao do “papa” e dos bispos das dioceses. Age assim porque sabe, com razão, que a doutrina, a moral, a liturgia e a disciplina geral do Novus Ordo são condenadas pelos ensinamentos anteriores da Igreja Católica Romana. Mas então, se é necessário resistir à sua doutrina, moral, liturgia e disciplina geral, é necessário concluir que esses “papas” não detêm verdadeiramente a autoridade papal, que eles não são, por conseqüência, verdadeiros papas. E isso independentemente do procedimento eleitoral que os tenha designado para o cargo. Como a eleição não faz mais do que designá-los para receber o poder, ela não lhes comunica o poder por si só. O poder deriva de Cristo; É por essa mesma razão que nossa submissão ao papa é uma submissão a Cristo.
No entanto, considerar que os “papas” do Novus Ordo são verdadeiros papas – o que a Fraternidade pensa – é identificar a Igreja Católica com eles, porque onde está Pedro, está a Igreja. Mas identificar a Igreja Católica com eles estabelece uma espécie de atração gravitacional, exercida sobre os membros da Fraternidade, sobre João Paulo II e sua religião. De qualquer forma, de um modo ou de outro, a Fraternidade deve retornar ao colo de Wojtyla. Esta atração gravitacional para o Novus Ordo considerado como a Igreja, é responsável pelo liberalismo dos sacerdotes da Fraternidade, e as inúmeras deserções em favor do Novus Ordo ou da Fraternidade São Pedro.
Essa noção de duas igrejas, uma católica, outra conciliar, não está de acordo com a realidade. A realidade é que Wojtyla foi escolhido para ser um papa católico, e que ele afirma ser o papa católico. Ele não finge ser o chefe da Igreja Católica. A realidade é que ele tenta flanquear as estruturas da Igreja Católica com uma nova religião, o modernismo. Pelo próprio fato de tentar substituir a Fé Católica por uma nova religião, é impossível que ela possua a autoridade papal que afirma ter, ou parece ter, ou lhe foi designada para ter. Por quê? Porque a natureza da autoridade é levar a comunidade para seus próprios fins. E sendo um dos fins essenciais da Igreja Católica a manutenção da Fé católica, qualquer um que tente colocar um obstáculo para esse fim não pode ser mantido pela autoridade da Igreja Católica, que é a autoridade de Cristo. Consequentemente, é impossível que os papas do Vaticano II sejam verdadeiros, já que desejam para as estruturas da Igreja Católica um fim essencialmente desordenado.
A Fraternidade olha apenas para as estruturas externas da Igreja, enfatiza a continuidade que estas apresentam entre os períodos pré e pós-conciliar, a partir da qual conclui que o Novus Ordo é a Igreja Católica. O clero modernista está de fato em posse das estruturas católicas, mas isso não significa que elas representem a Igreja Católica.
Assim, a Fraternidade é presa de uma atração pela hierarquia modernista na posse de nossos edifícios católicos. Essa atração fatal é devastadora, porque faz de seu combate uma batalha pelo reconhecimento dos modernistas. Esta “legitimidade” que os modernistas podem conceder não tem nada de legitimidade, é apenas uma aparência, e à custa da pureza da Fé católica. No entanto, a Fraternidade é ofuscada, hipnotizada por essa vã esperança de “legitimidade”, um pouco como um cachorro perdido numa estrada que, deslumbrado, pára com o olhar fixo nas luzes de um carro que vem em sua direção, encontrando assim um fim trágico. Diante dessa tentativa iníqua dos modernistas de implementar seu plano, que consiste em preencher suas igrejas católicas com suas abominações, o dever mais solene dos católicos é denunciá-los como falsas autoridades, e então assumir uma posição católica que preserve a infalibilidade e a indefectibilidade, uma posição que se recusa a identificar a Igreja Católica com uma falsa hierarquia investida de uma falsa autoridade.
O futuro do movimento tradicionalista
Goste-se ou não, o futuro do movimento tradicionalista está largamente ligado ao da Fraternidade São Pio X, ou pelo menos aos seus atuais membros. Nestes tempos de crise da Igreja, são eles que têm as vocações sacerdotais, como tal, são os bravos de Israel.
Como um míssil lançado fora de seu caminho por má pontaria, essas vocações, sacerdotes e seminaristas, estão avançando rapidamente na direção de uma reconciliação com os inimigos da Igreja. Nada poderia agradar mais aos modernistas e ao diabo. Quase toda a energia, toda a força da fé católica, concentrou-se em um exército que não luta.
Assim, é inevitável que muitos membros da Fraternidade acabem se entregando ao Novus Ordo, de uma forma ou de outra. É provável que a Fraternidade conclua um acordo com o Novus Ordo, que obtenha “reconhecimento” nos termos considerados por ela mais aceitáveis que os do acordo com a Fraternidade São Pedro, e que assim será absorvida pela religião modernista. Na minha opinião, tal acordo causaria a deserção de cerca de 20% de seus adeptos atuais, que sairiam e se reagrupariam, mas apenas para reiniciar o mesmo processo. Estes retomarão a tocha do lefebvrismo, uma teologia absurda da Igreja, um pé em cada uma das duas religiões, a católica e a modernista, continuando a filtragem de documentos e decretos do Vaticano. E, inevitavelmente, esse grupo de 20%, devido a tensões e contradições, dividir-se-á novamente.
O verdadeiro futuro do movimento tradicionalista, que é também o futuro da resposta católica ao inimigo modernista, está em uma posição católica acerca da autoridade papal e da natureza da Igreja Católica. É por isso que considero da mais urgente e suprema necessidade que nós, sacerdotes e leigos que não queremos compromissos com o inimigo, trabalhemos juntos no estabelecimento de seminários católicos. E não é menos importante que os jovens de nossas “paróquias” renunciem às múltiplas atrações do mundo e se ofereçam à Igreja para o santo sacerdócio.
Se não cumprirmos este dever de formar padres católicos, adequada e corretamente preparados, teremos falhado perante Deus em não termos protegido nosso bem mais precioso: nossa Fé católica. E esse tesouro sagrado que nos foi transmitido com zelo pelos nossos antepassados, às vezes a preço de seu próprio sangue, terá sido, por nossa negligência, jogado como migalhas aos cães modernistas.
Não podemos evitar o dever de formar padres católicos que, no nosso tempo, pensem corretamente, saibam quem é o inimigo da Igreja, saibam onde ele está e desejem combatê-lo com zelo e santo fervor, em vez de assinar um compromisso com ele. Se deixarmos de cumprir esse dever, receberemos o que merecemos: essas capelas e escolas que nos preservaram com tanto cuidado e esforço do modernismo serão levadas para as mãos dos sacerdotes – mesmo se forem validamente ordenados – que traíram a pureza da fé católica, fazendo-se reconhecer pelos hereges modernistas.
Apelo à Fraternidade São Pio X
Vocês têm quase toda a valorosa juventude da Igreja em suas tropas. Em seus seminários, eles foram treinados para pensar que a coexistência com a hierarquia modernista é a solução para os problemas da Igreja. Por isso, deram origem à Missa de Indulto, à Fraternidade São Pedro e a outras organizações do mesmo gênero.
Vocês continuam dialogando com os hereges, esforçando-se para serem absorvidos por eles. Vocês denunciam como cismáticos todos os sacerdotes que declaram que os hereges não têm autoridade sobre os católicos. Vocês os perseguiram, expulsaram, caluniaram e os reduziram em muitos casos à pobreza e à miséria.
Mesmo hoje, sua organização geme sob as tensões das contradições inerentes à sua posição e aloja dentro de seus muros “liberais” e “conservadores”, que são definidos de acordo com o preço que pagam pelo compromisso com os hereges modernistas, considerados por eles a verdadeira autoridade da Igreja Católica Romana.
Desistam, de uma vez por todas, do seu desejo de coexistência com os hereges. Declarem guerra de uma vez por todas àqueles que destruíram nossa Fé e os denunciem como hereges. Adotem a posição católica que acredita que não podem ter recebido de Cristo a missão de liderar a Igreja aqueles que impõem à Igreja uma fé diferente. A primeira missão da Igreja Católica, antes de tudo, é testemunhar a verdade. Nosso Senhor disse: “Para isso nasci e para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade”. Se o Vaticano II não é a verdade, e vocês sabem que não é, quem o ensina à Igreja como verdade não pode ter recebido de Cristo a missão de ensinar a verdade.
Parem de apoderar-se da juventude da Igreja que vem até vocês para ser instruída, e de fazê-la apóstola de uma teologia impossível que a leva a abraçar o Novus Ordo.
Deixem de ser o Gelboé da Igreja em sua luta contra os filisteus.
Fraternitas, Fraternitas, convertere ad Dominum Deum tuum.