SŪMULA CONTRA CORPUS DOCTRINĀLE "RECOGNOSCERE ET RESISTERE"
- Seminarista Paulo Cavalcante
- 29 de mar.
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Por Seminarista Paulo Cavalcante

A influência da Nouvelle Theologie na FSSPX
A eclesiologia de Karl Rahner apresenta uma visão dinâmica da Igreja, onde a hierarquia não é o único canal da autoridade divina, mas também os fiéis podem receber diretamente os mandamentos do Senhor. Em sua obra The Dynamic Element in the Church (1958), Rahner afirma:
“Na Igreja à qual pertencem os elementos carismáticos, os subordinados não são apenas aqueles que devem cumprir as ordens da hierarquia. Eles também têm outros mandamentos a cumprir: os do Senhor, que também guia diretamente a Igreja de Deus, e nem sempre o faz em primeiro lugar transmitir os comandos e ordens de Deus aos cristãos comuns através das autoridades eclesiásticas.” (Rahner, Karl. The Dynamic Element in the Church, Herder and Herder, 1964, p. 14).
Esse conceito desafia a visão tradicional da jurisdição e da estrutura hierárquica da Igreja, oferecendo um espaço para a atuação dos fiéis e do clero de maneira mais independente da hierarquia estabelecida.
Essa perspectiva encontra ressonância na Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), especialmente na visão apresentada pelo Bispo Bernard Tissier de Mallerais em sua conferência de 1991 aos Grupos de Estudos Católicos em Paris. Ele afirma:
“Não é o papa nem a hierarquia diocesana que entrega o seu rebanho ao clero tradicional, mas a Igreja e Nosso Senhor Jesus Cristo como Cabeça do Seu Corpo Místico.”
E ainda:
“Na atual situação de crise, é óbvio que os vossos sacerdotes não podem receber dos seus superiores na Igreja, isto é, dos Bispos diocesanos e do Papa, um rebanho, porque esse rebanho lhes é recusado. Esta autoridade sobre um rebanho deve, portanto, ser-lhes dada de outra maneira: isto é, por jurisdição de suplência ou fornecida. Neste caso é a própria Igreja que dá aos sacerdotes um poder como o poder do pastor sobre o seu rebanho.”
O conceito de "jurisdição suplência" defendido pela FSSPX encontra paralelo na ideia de Rahner de que Deus pode agir diretamente sobre os fiéis e sobre aqueles que exercem funções ministeriais, independentemente da estrutura hierárquica formal. Isso fornece uma justificativa teológica para a atuação da Fraternidade fora das estruturas oficiais da Igreja.
A convergência entre as ideias de Rahner e a posição da FSSPX, contudo, ocorre dentro de contextos distintos. Enquanto Rahner advoga por uma eclesiologia dinâmica dentro da Igreja conciliar, a FSSPX alega uma crise de autoridade na Igreja moderna e reivindica a necessidade de uma jurisdição extraordinária para preservar a tradição.
Independentemente da distinção contextual, o fundamento da teoria de uma possessão de jurisdição que não passa pelo papa é um absurdo anti-dogmático. Monsenhor de Marbeuf, Arcebispo de Lyon, em sua Pastoral sobre o cisma da França, do ano de 1790, deu expressão a essas palavras:
"É um dogma católico que, para ser um pastor legítimo, é necessário ter uma missão canônica; e que é somente ao Papa que, como possuidor da primazia da jurisdição por direito divino, cabe dar a instituição canônica aos Arcebispos e Bispos; donde se segue que todo Prelado que deriva sua missão de qualquer outra fonte deve ser tido como usurpador."
Se a FSSPX reconhece que os “Papas” do Vaticano II são verdadeiramente Vigários de Cristo e que os bispos diocesanos possuem sucessão apostólica material e formalmente, então, logicamente, deveria se sujeitar a essa autoridade. O Magistério ensina que a Igreja não pode defeccionar da fé, e que seu governo hierárquico é garantido por Cristo, não sobrando espaço para especular a necessidade de uma hierarquia paralela em detrimento da hierarquia oficial. Do obscurecimento da verdade na Igreja, o Decreto da Graça § 1º, diz:
“A proposição que afirma ‘que nestes últimos séculos disseminou-se um obscurecimento generalizado das verdades mais importantes concernentes à religião, que são a base da fé e dos ensinamentos morais de Jesus Cristo’, é HERÉTICA.” (Papa Pio VI, Bula Auctorem fidei, 1794)
O Papa Pio XII ensina em sua encíclica Ad Apostolorum Principis:
“Portanto ensinamos e declaramos que a Igreja romana, por disposição divina, tem o poder ordinário do primado sobre todas as outras, e que este poder de jurisdição do romano pontífice, de caráter verdadeiramente episcopal, é imediato; e que os pastores e os fiéis, de qualquer rito ou dignidade, quer tomados singularmente, quer todos juntos, são obrigados ao dever de subordinação hierárquica e de verdadeira obediência a ela, não somente nas coisa de fé e moral, mas também nas que dizem respeito à disciplina e ao governo da Igreja, espalhada no mundo inteiro; de forma que, conservada assim a unidade da comunhão e da fé com o romano pontífice, a Igreja de Cristo seja um único rebanho sob um único sumo pastor. Este é o ensinamento da verdade católica do qual ninguém se pode afastar sem perder a fé e a salvação.”
Na Encíclica Quartus Supra, de 6 de janeiro de 1873, o Papa Pio IX disse a um grupo de Armênios que afirmavam ser católicos, mas que não sentiam que deveriam obedecer o papa:
"De fato, é tão contrário à constituição divina da Igreja, como à tradição perpétua e constante, que alguém tente provar a catolicidade de sua fé e realmente se considerar católico, quando se falha na obediência à Sé Apostólica.
Pois a Igreja Católica sempre considerou cismáticos todos aqueles que obstinadamente resistem à autoridade de seus prelados legítimos, e especialmente seu pastor supremo, e qualquer um que se recusa a executar suas ordens e até mesmo a reconhecer sua autoridade."
Dessa forma, enquanto houver um Papa reinante, não há justificativa para alegar jurisdição extraordinária ou de suplência, pois toda jurisdição vem do Sumo Pontífice. A encíclica Mystici Corporis de Pio XII ensina que ninguém pode exercer missão eclesiástica legítima sem estar em comunhão com a Sé Apostólica:
“Os bispos não só devem ser considerados como membros mais eminentes da Igreja universal, pois que se unem com nexo singularíssimo à cabeça de todo o corpo, e com razão se chamam "os primeiros dos membros do Senhor", mas nas próprias dioceses, como verdadeiros pastores, apascentam e governam em nome de Cristo os rebanhos que lhes foram confiados [missão canônica]; ainda que nisto mesmo não sejam plenamente independentes, mas estão sujeitos à autoridade do romano pontífice, de quem receberam imediatamente o poder ordinário de jurisdição que possuem.” (Mystici Corporis, 1943, n. 41).
O Corpus Doctrinale R&R
Em síntese, pode-se ter como a doutrina da posição teológica Reconhecer e Resistir, os seguintes parágrafos retirados da obra "Do liberalismo a apostasia" (Cap. XXXI: Paulo VI — Papa Liberal), escrita por Monsenhor Marcel Lefebvre:
“O magistério conciliar por ser liberal abdicou de sua própria autoridade. Isso é manifesto quando vê-se nos documentos do concílio o chamado senso de fé dos fiéis, ou seja, a hierarquia é reduzida a somente mediar o debate e exprimir o consenso dos fiéis. Ora, se Deus revela a doutrina imediatamente ao povo, não há mais necessidade da hierarquia exercer seu papel docente.
"Uma hierarquia sem autoridade por abdicação foi concebida. O magistério conciliar foi reduzido por ele mesmo a magistério de doutores privados, que apesar de manter a potestas regendi, ou seja, os meios para a ação magisterial, não possui mais a forma de magistério autêntico, que é a autoridade.
"O liberal é em essência anti autoritário. Ora, é evidentemente possível que haja 'autoridades' liberais como se vê no mundo. São “autoridades” que, por perder a causa formal de autoridade política, ou seja, de guiar a nação ao bem comum, e contudo mantém seu poder. Ilegítimo, mas possui. Existe o magistério de doutores privados que não é infalível. Como está provado, o magistério liberal é reduzido ao magistério privado, pois não querem falar in persona Christi.”
Esta mesma doutrina expressa por Monsenhor Lefebvre foi levada adiante por seus sequazes, até os dias de hoje. Em seu livro "A Candeia debaixo do Alqueire" (Art. I, Resp. à IV objeção), o Pe. Calderón diz:
“Quando dizemos que o magistério conciliar não tem intenção de impor suas novidade com autoridade, referimo-nos à autoridade doutrinal que possuem em razão da ‘potestas docendi’; porque por outro lado, tem feito uso e abusado da autoridade disciplinar que tem pela ‘potestas regendi’ para obrigar fieis, sacerdotes e bispos a acatarem às sua reformas”
Faz-se mister, nortear os incautos e combater os perjúrios com a doutrina da Igreja, que tratou da melhor forma como jamais tinha sido tratada antes, durante o Concílio Vaticano I. A Constituição dogmática "Pastor Aeternus", realiza uma condenação expressa dos ensinos acima explanados:
“Se, pois alguém disser que ao Romano Pontífice cabe apenas o ofício de inspeção ou direção, mas não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a Igreja, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja, espalhada por todo o mundo; ou disser que ele só goza da parte principal deste supremo poder, e não de toda a sua plenitude; ou disser que este seu poder não é ordinário e imediato, quer sobre todas e cada uma das igrejas quer sobre todos e cada um dos pastores e fiéis — seja excomungado.” (Cap. III — A natureza e o caráter do primado do Pontífice Romano Cânon 1831: Constituição dogmática Pastor Aeternus).
Outra citação digna de menção é retirada da Encíclica Quæ in patriarchatu, de 1º de setembro de 1876, onde o Papa Pio IX dirigiu a alguns Caldeus que estavam reivindicando submissão ao papa, mas que ignoravam suas ordens:
"De fato, Veneráveis Irmãos e filhos amados, é uma questão de reconhecer o poder [desta Sé], mesmo sobre suas Igrejas, não apenas no que diz respeito à fé, mas também no que diz respeito à disciplina. Aquele que nega isso é um herege; aquele que reconhece isso e obstinadamente se recusa a obedecer é digno de anátema."
Vindo para o contexto do Vaticano II, lendo os documentos promulgados pelo mesmo, não pode-se afirmar em paz de consciência que se tratavam de ensinamentos sem tom autoritativo. Cada expressão utilizada imprimi conotação evidente de que devem ser acolhidos como um ensinamento dado pelos Pastores que, na sucessão apostólica, falam com o “carisma da verdade” (Dei Verbum n. 8), “revestidos da autoridade de Cristo” (Lumen Gentium, n. 25), “a luz do Espírito Santo” (ibid.).
Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Mysterium Ecclesiae, (24-VI-1073, nn. 2-5):
"Este carisma, autoridade e luz certamente estiveram presentes no Concílio Vaticano II; negar isto a todo o episcopado com Pedro e sob Pedro, reunido para ensinar à Igreja universal, seria negar algo que é a essência mesma da Igreja."
Os diversos graus de adesão às doutrinas propostas pelo Magistério foram recordadas pelo Concílio no n. 25 da Constituição Lumen Gentium, e depois sintetizadas em três seções adicionadas ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano na fórmula da Professio fidei, publicadas em 1989 pela Congregação para a Doutrina da Fé com aprovação de João Paulo II.
As afirmações do Concílio que recordam verdades de fé requerem, obviamente, a adesão de fé teologal, não porque tenham sido ensinadas por este Concílio, mas porque já haviam sido ensinadas infalivelmente como tais pela Igreja, mediante um juízo solene ou mediante o Magistério ordinário e universal. Assim como requerem um assentimento pleno e definitivo as outras doutrinas recordadas pelo Vaticano II que já haviam sido propostas com ato definitivo pelas precedentes intervenções magisteriais.
Os demais ensinamentos doutrinais do Concílio requerem dos fieis o grau de adesão denominado “assentimento religioso da vontade e da inteligência”. Um assentimento “religioso”, portanto, não fundado em motivações puramente racionais. Tal adesão não se configura como um ato de fé, mas sim de obediência não simplesmente disciplinar, mas enraizada na confiança da assistência divina ao Magistério e, por isso, “na lógica e sob o impulso da obediência da fé” (Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Donum Veritatis, 24-V-1990, n. 23). Esta obediência ao Magistério da Igreja não constitui um limite posto à liberdade; ao contrário, é fonte de liberdade. As palavras de Cristo: “Quem a vós escuta, a mim escuta” (Lc 10,16) se dirige também aos sucessores dos Apóstolos; e escutar a Cristo significa receber em si a verdade que nos faz livres (Cf. Jo 8,32).
A querela do Doutor Privado
Parece que o Papa pode errar como doutor privado. Vide o que dizem alguns teólogos:
Vermeersch, I. Creusen diz em Epitome Iuris Canonici (Rome: Dessain 1949. 340):
“Pelo menos de acordo com o mais comum ensinamento, o Romano Pontífice enquanto doutor privado pode cair em heresia manifesta."
Eduardus F. Regatillo afirma em Institutiones Iuris Canonici (5a ed. Santander: Sal Terrae, 1956. 1:396):
"1. ‘O papa não pode ser herege ainda que enquanto doutor privado’. Essa é piedosa, mas há pouca base para ela."
Mons. De Ségur, em Le Pape est infaillible (Paris 1872, págs. 191-2):
"Quando o Papa fala como homem, como pessoa particular, pode certamente enganar-se, até mesmo quando fala de coisas santas. Como homem, o Papa não é mais infalível do que eu ou do que vós."
Em contrário, um postulado dos bispos italianos, redigido durante os trabalhos preparatórios do Concílio Vaticano I, continha precisamente uma frase em que se admitia que o papa poderia errar como um simples indivíduo, mas que era infalível como doutor público. Os bispos italianos propuseram que esta frase servisse de base para a preparação da definição de infalibilidade pontifícia.
Agora, este postulado não foi preservado pelos Padres, precisamente por causa da passagem sobre o doutor privado falível. O Vaticano I definiu corretamente que o Romano Pontífice tem uma fé “eternamente infalível” e que ela “não poderia sofrer desvios” (Pastor aeternus, CH.4)
Durante as deliberações do Concílio, o relator da Suprema e Sacra Congregação do Santo Ofício, Mons. Zinelli, fez esta intervenção contra a tese do “doutor privado herético”:
“E os casos hipotéticos do pontífice cair em heresia como pessoa privada, não têm peso válido. (Relatório de Mons. Zinelli, relator da Suprema e Sacra Congregação do Santo Ofício, no Concílio Vaticano I, em: Gerardus Schneemann (ed.): Acta et decreta sacrosanti oecumenici concilii Vaticani cum permultis aliis documentis concilium ejusque historiam spectantibus. Freiburg 1892, col. 357).
Como atestou-se, a tese do Papa poder errar como doutor privado, foi determinada como uma hipótese absolutamente inválida. Isso deriva da definição de que a fé do Papa não pode sofre desvios externos, obviamente isso o contempla como doutor público e privado. Não confunda-se aqui o caso da heresia secreta, que não é externa. Ademais, para frisar isso bem, continuemos por entender que, o carisma indelével (entendido também como a forma) do papado é a infalibilidade, que é exercida através de seu magistério, que por sua vez é diário, como veremos.
Pode a Igreja se reduzir a um Magistério meramente privado?
O termo "magistério privado" é contraditório em si mesmo porque a própria essência do magistério na Igreja Católica é pública, universal e vinculativa. O Magistério, conforme ensinado pelo Concílio Vaticano I é o ensinamento oficial da Igreja por meio do Papa e dos bispos em comunhão com ele. Portanto, ao qualificar o magistério como "privado", nega-se sua quididade e fim último.
Outro erro comum que este corpo doutrinal comete é contra a infalibilidade do Magistério. O Concílio Vaticano I não diz de forma alguma que o papa “só” seria infalível em suas definições solenes. Por quê? Bem, simplesmente porque o papa também é infalível em seu ensino diário! Isso surge claramente a partir de uma observação feita pelo Bispo D’Avanzo, Relator do Concílio Vaticano I da Congregação para doutrina da Fé:
“A Igreja é infalível em seu magistério ordinário, que é exercitado diariamente, principalmente pelo papa, e pelos bispos unidos a ele, que por isso são, como ele, infalíveis pela indefectibilidade da Igreja, que é assistida pelo Espírito Santo todos os dias (…).
Aqui está mais uma intervenção, do mesmo relator para a Congregacão para doutrina da Fé:
“Há, na Igreja, um duplo modo de infalibilidade: o primeiro é exercido pelo magistério ordinário. (…) É porque, como o Espírito Santo, o Espírito da Verdade permanece todos os dias na Igreja, a Igreja também ensina as verdades da fé todos os dias, com a ajuda do Espírito Santo. Ela ensina todas as verdades, já definidas ou explicitamente contidas no depósito da revelação, mas ainda também as não definidas, sejam, em suma, aquelas que são objeto de uma fé implícita. Essas verdades, a Igreja ensina todos os dias, ambas principalmente pelo Papa, quanto a cada um dos bispos em comunhão com ele. Todos, o papa e os bispos, neste ensino ordinário, são infalíveis com a própria indefectibilidade da Igreja. Eles diferem apenas nisso: os bispos não são infalíveis por si próprios, mas precisam da comunhão com o papa que os confirma, mas o Papa, não precisa de outro senão a assistência do Espírito Santo, que já foi prometida. Assim, ele ensina e não é ensinado, ele confirma e não é confirmado” (Intervenção oficial do Bispo D’Avanzo, relator da Congregacão para doutrina da Fé, perante os Padres do Vaticano, em: Dom Paul Nau ―Le magistère pontifical ordinaire, lieu theologique. Essai sur l’autorité des enseignements du souverain pontife “, em Revue thomiste, 1956, p. 389–412 extraído por Neubourg 1962, p. XV).
O Papa Pio XI ensina o mesmo na Encíclica Mortalium animos:
“O Magistério da Igreja – estabelecido pela vontade divina na terra, com a finalidade de custodiar perenemente intactas as verdades reveladas, e de levá-las com segurança e facilidade ao conhecimento dos homens – todos os dias, é verdade, é exercido por meio do Romano Pontífice e dos Bispos que estão em comunhão com ele; mas tem também o encargo de proceder à definição de algum ponto de doutrina, com ritos ou decretos solenes, quando fosse necessário resistir com mais força aos erros e às contestações dos hereges, ou quando fosse preciso imprimir com mais precisão e clareza certos pontos de doutrina nas mentes dos fiéis” [DS 3683].
O mesmo Papa diz na Encíclica Casti Connubi:
“Seria indigno de um cristão… sustentar que a Igreja, por Deus destinada a Mestra e Rainha dos povos, não esteja iluminada o bastante acerca das coisas e circunstâncias modernas; ou então, não prestar a ela assentimento e obediência a não ser naquilo que ela impõe por via de definições mais solenes, como se as outras suas decisões se pudessem presumir falsas, ou não providas de suficientes motivos de verdade e de honestidade.”
O Papa Pio XII afirma na Encíclica Humani Generis:
“Nem se deve considerar que os ensinamentos das Encíclicas não exijam, por si mesmos, o nosso assentimento, com o pretexto de que os Pontífices não exercem aí o poder de seu Magistério Supremo. Na realidade, esses ensinamentos são do Magistério ordinário, para o qual valem também as palavras: ‘Quem vos ouve, ouve a Mim’ (Lc X, 16); ademais, a maior parte daquilo que é proposto e inculcado nas Encíclicas já é, por outras razões, patrimônio da doutrina católica. Portanto, se os Sumos Pontífices em seus atos emanam de caso pensado uma sentença em matéria até então controversa, é evidente para todos que essas questões, segundo a intenção e a vontade dos mesmos Pontífices, não podem mais ser objeto de livre discussão entre os teólogos”.
Ainda Pio XII em Commossi, diz:
“Não é, porventura, o Magistério… o primeiro ofício da Nossa Sé Apostólica? (…) Na Cátedra de Pedro Nós nos sentamos unicamente porque somos Vigário de Cristo. Nós somos o Seu Representante na terra; somos o órgão por meio do qual faz ouvir a Sua voz Aquele que é o único Mestre de todos (Ecce dedi verba mea in ore tuo [N. do T. – ‘Eis que ponho as Minhas palavras na tua boca’], Jer. 1, 9).
A influência da Nouvelle Theologie na FSSPX (Parte II)
Vamos supor que tudo que eu escrevi até aqui esteja errado, e assumamos que o lefebvrismo esteja correto. Então, temos o seguinte: a Igreja Católica é o único meio de salvação e, ao mesmo tempo, é capaz de conduzir as almas ao inferno, com a promulgação de leis nocivas, o ensino de falsas doutrinas e a imposição universal de uma nova religião pelo papa e a hierarquia. Para se beneficiar do aspecto salvífico desta Igreja, é preciso aceitar apenas dogmas declarados e resistir a tudo o mais, exceto o que o superior do grupo lefebvrista considera "tradicional".
Agora, o que não é muito tradicional é essa noção de uma Igreja pecadora que o lefebvrismo adotou. Além disso, quem defendeu essa posição com muita clareza é o próprio Hans Küng, um conhecido "teólogo" modernista que participou como "especialista" durante o Concílio Vaticano II. Para o herege suíço adepto da Nouvelle Theologie, a infalibilidade da Igreja consiste em não ser abandonada por Deus quando erra. Ele diz em sua obra intitulada Infallibility? An Inquiry (Garden City, New York: Doubleday, 1971), p. 181:
"Pode-se falar de 'infalibilidade' da Igreja. E, tendo-a fundamentado criticamente de uma forma muito mais completa, mantemos totalmente a declaração feita em livros anteriores sobre a "infalibilidade" ou "indefectibilidade" (Untrüglichkeit) da Igreja: na medida em que a Igreja é humildemente obediente à palavra e à vontade de Deus, ela compartilha da verdade do próprio Deus (Deus revelans), que não pode enganar (fallere) nem ser enganado (falli); então, mentira e fraude (omnis fallacia) e todo engano (omne fallax) estão distantes dela. Infalibilidade, indefectibilidade neste sentido radical, portanto, significa um fundamental permanecer da Igreja na verdade, que não é anulado por erros individuais.
O que se quer dizer aqui é que, não importa quão sinistro o desvio da verdade da Igreja em uma instância particular possa ser, não importa quão a Igreja - como Israel antes dela - possa estar constantemente indecisa e duvidando, e às vezes até mesmo errando e se afastando, '... ele estará com vocês para sempre, aquele Espírito da verdade' (João 14:16-17). A Igreja não sucumbirá ao poder das mentiras. Por causa da promessa de Deus, sabemos pela fé que ela é infalível; sobre ela, por causa da promessa de Deus, a infalibilidade, a indecepção, são concedidas. Apesar de todos os erros e mal-entendidos, ela é mantida na verdade por Deus."
Ora, temos que a FSSPX, sob a liderança de Monsenhor Lefebvre, propaga uma visão da Igreja que, embora sendo a única verdadeira Igreja de Cristo e o único meio de salvação, está, no entanto, ameaçada de corrupção devido à influência do Vaticano II, que eles consideram obra da Igreja. A Igreja, nesse contexto, seria capaz de conduzir as almas ao inferno devido ao ensino de falsas doutrinas, novas práticas litúrgicas e outras reformas, as quais são vistas como desvios graves da tradição católica, consideradas heréticas ou, no mínimo, indesejáveis.
Que a Igreja é infalível na sua disciplina segue-se de sua própria missão. A missão da Igreja é conservar íntegra a fé e conduzir os povos à salvação ensinando-os a observar tudo o que Cristo ordenou. Mas se em matéria disciplinar ela pudesse estipular, impor ou tolerar algo contrário à fé ou à moral, ou algo que viesse a resultar em detrimento da Igreja ou prejuízo das gentes, a Igreja poderia então desviar-se de sua missão divina, o que é impossível.
Entenda-se que a Igreja é dita infalível na sua disciplina, não como se as suas leis fossem imutáveis, pois a alteração das circunstâncias torna muitas vezes oportuno abrogar ou mudar as leis; nem, tampouco, como se as suas leis disciplinares fossem sempre as melhores e mais úteis… A Igreja é chamada de infalível em sua disciplina, no sentido de que nas suas leis disciplinares nada pode ser encontrado que seja oposto à fé, aos bons costumes ou que possa agir em detrimento da Igreja ou em prejuízo [‘damnum’] dos fiéis.
Isso é insinuado pelo Concílio de Trento, sessão XXII, cân. 7:
"Se alguém disser que cerimônias, ornamentos e signos exteriores que a Igreja Católica emprega na celebração das Missas são antes estímulos à impiedade que auxílios à piedade, seja anátema."
Notem que há, de fato, uma certa ressonância entre o pensamento de Hans Küng e o posicionamento da FSSPX em relação à fragilidade da Igreja frente a erros. Ambos reconhecem a existência de erros ou falhas de cunho doutrinal, moral, litúrgico e disciplinar dentro da Igreja, divergindo somente no fato que para Küng a Igreja permanece indefectível frente a tudo isso de modo a ser plenamente assistida pelo Espirito Santo no erro, e para a FSSPX a Igreja promulga e impõe tudo isso contra Cristo através da hierarquia legitimamente instituída por Cristo, entretanto sem assistência do Espírito Santo, e que de alguma forma permanece indefectível.
O conceito de indefectibilidade da Igreja de ambos é escabrosa!
Contra esses erros, o Bispo Vicent Ferrer Gasser no Concílio Vaticano I em 11 de julho de 1870 em sua Relatio diz:
“Finalmente, não separamos o Papa, ainda que minimamente, do consentimento da Igreja, conquanto este consentimento não seja estabelecido como condição que lhe seja antecedente ou conseqüente. Nós não seríamos capazes de separar o Papa do consentimento da Igreja, porque esse consentimento jamais lhe faltaria. Com efeito, uma vez que acreditamos que o Papa é infalível por meio da assistência divina, por esta mesma razão, também acreditamos que o consentimento da Igreja não irá faltar às suas definições, uma vez que não é possível acontecer que o corpo episcopal esteja separado de sua cabeça, bem como não é possível que a Igreja universal seja capaz de falhar. Pois é impossível que obscuridade geral seja difundida no que diz respeito às verdades mais importantes que tocam a religião, como manteve o Sínodo de Pistóia.” (O’Connor 43-44; Mansi, col. 1213-1214)
A Constituição Dogmática Pastor Aeternus, também elucida exatamente o oposto:
E, decerto, esta doutrina apostólica, todos os veneráveis Padres abraçaram-na e os santos ortodoxos Doutores a veneraram e seguiram, plenissimamente conscientes de que esta Sé de são Pedro sempre permaneceu intacta de todo erro, segundo a divina promessa de nosso Senhor e Salvador feita ao chefe dos seus discípulos: “Eu roguei por ti, para que tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos”[Lc 22,32]. Foi, portanto, este carisma da verdade e da fé indefectível, concedido divinamente a Pedro e a seus sucessores nesta cátedra, a fim de que desempenhassem seu sublime encargo para a salvação de todos, para que assim todo o rebanho de Cristo, afastado por eles do pasto venenoso do erro, fosse nutrido com o pábulo da doutrina celeste, para que assim, removida toda ocasião de cisma, se conservasse unida a Igreja universal e, apoiada no seu fundamento, se mantivesse firme contra as portas do inferno.” (Denz. 3070-3071)
Roma católica perdeu a fé e se tornou Roma apóstata?
Nos discursos de Mons. Marcel Lefebvre esse contraste é nítido. Para exemplificar, vejamos o que o bispo afirmou numa Carta a "João Paulo II", de 02 de junho de 1988: “Continuaremos a rezar para que a Roma moderna, infestada de modernismo, torne a ser a Roma católica e reencontre a sua Tradição bimilenar”. Também o que afirmou numa conferência em Albias (Tarn-et-Garonne) no dia 10 de outubro de 1990: “Enquanto Roma não voltar a Tradição, enquanto Roma não voltar a fé católica, não podemos esperar o retorno da fé católica para o conjunto da Igreja”.
São Roberto devotou o quarto capítulo do livro quarto de seu tratado De Romano Pontifice [Sobre o Romano Pontífice] à questão De Romana ecclesia particulari [Sobre a igreja particular de Roma]. Sua tese principal nesse capítulo era a defesa de que não só o Romano Pontífice, como também a igreja particular ou local da cidade de Roma devem ser considerados incapazes de erro em questões de fé (Cf. De Controversiis Christianae Fidei Adversus Huius Temporis Haereticos [Colônia, Köln, 1620,] I, col. 811).
Em razão de seu posto peculiar na Igreja militante universal, esta congregação individual sempre foi e sempre será protegida de heresia corporativa pelo poder providencial de Deus. A igreja local de Roma, com o seu bispo, o seu presbyterium, o seu clero e o seu laicato existirá até o fim do tempo assegurada na pureza de sua fé. A proposição de que “a igreja da cidade de Roma pode cair em erro” é uma das teses de Pedro de Osma condenadas formalmente pelo Papa Sisto IV como erróneas e como contendo heresia manifesta.
Aqui vale ressaltar a importância das sutis distinções entre esse e stare, ocupar e usurpar, missio e sessio, sucessão formal e material, Igreja e Vaticano II.
Solução definitiva
Seria muito mais fácil se esse corpo doutrinal, conhecido como 'Reconhecer e Resistir', realizasse uma simplex apprehensio da realidade e, mediante o judicium indentificasse a problemática — a saber, a crise de autoridade na Igreja —, chegasse finalmente na ratiocinatio, conectando os conceitos e princípios já fornecidos pelo Magistério ou pelos teólogos, elaborando uma conclusão que não envolvesse contradição ou disparidade substancial entre o esse existentiae e o esse intelligibile. Tal contradição só pode ser fruto de uma falha no processo lógico, mediada pela compreensão nebulosa a cerca dos conceitos fornecidos pelo Magistério e os princípios pela Teologia, que fornecem falsas premissas para resultar unicamente em um esse in anima tantum, ao invés de algo que, enfim, possa ser verdadeiramente passível de ser considerado verdadeiro. O erro gnosiológico ocorre quando não se distingue corretamente os modos de ser, levando a contradições ou falsas premissas, como no caso da FSSPX, que reconhece o Papa (juízo de existência), mas ao mesmo tempo nega sua autoridade prática, criando um conceito híbrido que não se sustenta logicamente, como ja expusemos nos outros pontos exaustivamente.
Exporei a realidade e a escrutinarei com um rectum judicium, e provando minha ratiocinatio parte por parte e conceito por conceito, as premissas elucidadas gerarão uma conclusão distinta (entendida na definição epistemológica tomista) com integritas e proportio, iluminada não só pela claritas rationis mas também pela claritas fidei:
Aquele que foi eleito para o papado por um conclave legalmente convocado e na forma exigida (nem entraremos no mérito da questão da validade da eleição ou da legitimidade que os atuais eleitores possuem para votar), mas que pretende ensinar o erro ou promulgar leis prejudiciais, não pode receber autoridade papal até que se arrependa e rejeite o erro ou as leis prejudiciais. Por outras palavras, ele não possui a forma (que é acidental) do Papado, i.e., a Autoridade, já que essa é ordenada intrinsecamente ao bem comum e o fim último dessa mesma sociedade sobrenatural, mas permanece nomeado para receber o poder papal; ou seja, os eleitores dispuseram a matéria secunda que possui um obstáculo para recepção da forma acidental que é infusa por Deus apenas, e assim ele permanece até à sua morte, até se demitir ou até que um conclave legal ou outra autoridade competente tenha verificado a vacância da Sé.
Provas da primeira parte:
Maior: a autoridade papal não é conferida por Deus a uma pessoa que, embora validamente designada, coloca um impedimento para recebê-la.
Menor: Aquele que pretende ensinar o erro ou promulgar leis prejudiciais coloca um impedimento à recepção da autoridade papal.
Conclusão: Portanto, a autoridade papal não é conferida por Deus a uma pessoa validamente designada, mas que pretende ensinar o erro ou promulgar leis prejudiciais.
Prova da maior: A autoridade considerada em particular é composta pela união de duas partes, uma material e a outra formal. Esta união não pode ocorrer se houver um impedimento, por analogia com os elementos naturais.
Prova da menor: A condição sine qua non para receber a autoridade é que o destinatário pretenda promover o bem comum da comunidade da qual ele é o chefe. O bem comum da Igreja é ensinar aos homens a Verdade, conduzi-los ao Céu no caminho certo e santificá-los através de Sacramentos verdadeiros e válidos. Portanto, a autoridade da Igreja está essencialmente ordenada a ensinar aos homens a Verdade, a levá-los para o Céu no caminho certo e a santificá-los através de Sacramentos verdadeiros e válidos. Então, aqueles que não tendem para estes fins colocam um impedimento à recepção da autoridade.
Provas da segunda parte:
Maior: A designação legal do papado não pode ser perdida excepto de três maneiras: 1) pela morte do sujeito; 2) pela recusa ou renúncia voluntária do sujeito; 3) pela privação da designação do sujeito por parte da autoridade competente.
Menor: Aquele que é eleito por um conclave convocado legalmente da forma exigida, mas que pretende ensinar o erro ou promulgar leis prejudiciais, não está morto, nem rejeitou ou renunciou voluntariamente à nomeação ou foi privado [da designação] pela autoridade competente.
Conclusão: Então, aquele que foi eleito por um conclave convocado legalmente de acordo com as formas exigidas, mas que pretende ensinar o erro ou promulgar leis prejudiciais não perdeu a sua designação legal para o papado.
Prova de Maior: Do Direito Canônico (cân. 183 §1): Um ofício eclesiástico é perdido por renúncia, privação, remoção, transferência após o término de um tempo predeterminado. (Nem a transferência nem a passagem de tempo fixada no ato de provisão se aplicam ao papado)
Prova da menor: É evidente que Bergoglio: 1) está vivo; 2) aceitou a nomeação do conclave e nunca se demitiu; 3) não foi privado [da designação] por nenhuma autoridade competente.
Sede Vacans.
Apêndice
Gostaria de explicitar que se em algum momento deixei transparecer através desse artigo que imputo contra a FSSPX o crime de cisma, nunca foi essa minha intenção e tampouco é essa minha opinião. E para sustentar tal opinião deixo algumas citações de peso:
Comentário do Cardeal à Suma Teológica: "Se alguém, no entanto, considera a pessoa do Papa suspeita com razão e, por isso, não apenas recusa sua presença, mas também seu julgamento imediato, estando, porém, disposto a aceitar juízes não suspeitos nomeados por ele, não incorre no crime de cisma nem em qualquer outro pecado. Pois é natural evitar o que é nocivo e precaver-se contra perigos [...]." (QUAESTIO XXXIX, ARTICULUS II: UTRUM SCHISMA SIT GRAVIUS PECCATUM QUAM INFIDELITAS, IV Sent., dist. xiii, q. ii, art. 2, ad 4; De Malo, q. 11, art. 10, ad 4, p. 309)
FX Wernz, P. Vidal: “Finalmente, não podem ser contados entre os cismáticos, aqueles que se recusam a obedecer ao Romano Pontífice porque consideram sua pessoa suspeita ou duvidosamente eleita por causa de rumores em circulação.” (Ius Canonicum, 7:398, 1943)
Rev. Ignatius Szal: “Nem há cisma se alguém simplesmente transgride uma lei papal pela razão de considerá-la muito difícil, ou se alguém recusa a obediência na medida em que suspeita da pessoa do papa ou da validade de sua eleição, ou se alguém resiste a ele como chefe civil de um estado.” (Comunicação de católicos com cismáticos, 1948)
De Lugo: “Nem é cismático alguém que nega sua sujeição ao Pontífice com base em dúvidas solidamente fundadas ['probabiliter'] sobre a legitimidade de sua eleição ou seu poder [refere-se a Sanchez e Palao].” (Disp., De Virt. Fid. Div., disp xxv, sect iii, nn. 35-8)
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